Vida Familiar

por Clarice Ebert

Um paradigma solidificado

A ideia de que a provisão financeira para o lar é tarefa apenas do homem e que os cuidados da casa são tarefas somente da mulher, é um paradigma solidificado em torno de uma percepção polarizada dos estereótipos homem e mulher. A polarização discursa que o homem é razão e a mulher é coração. Essa percepção interfere significativamente na estrutura da vida familiar. Especialmente interfere na forma como os cônjuges definem seus papéis e enfrentam os desafios em torno das provisões e dos cuidados domésticos.

O estereótipo do homem detentor da razão

Em um polo estaria o homem, considerado detentor da “razão”. Suas capacidades racionais lhe confeririam o potencial do pensamento, do raciocínio lógico, do planejamento, da organização, da objetividade e do foco. O “ser racional” seria da natureza do homem e, portanto, ele é quem estaria apto para as funções administrativas, governamentais, executivas e de liderança, em sociedade e família. O que significaria que seria do homem a tarefa de empreender, lançar-se ao mercado de trabalho e trazer os recursos financeiros e as provisões para a família. Como não teria habilidades inatas para a emoção (ou muito empobrecidas), estaria liberado das tarefas de cuidado, das demonstrações de afeto e do envolvimento em diálogos com sua parceira e filhos. Caso apresentasse esses comportamentos, seria até mesmo questionado em sua hombridade. Bastaria ser bem-sucedido no trabalho e prover os recursos financeiros para o ambiente doméstico. As tarefas que não entram no bojo da obtenção de recursos financeiros não seriam dele, até mesmo seria humilhante se envolver nelas. Por exemplo, seria vergonhoso lavar a louça ou trocar as fraldas dos filhos. Acreditava-se que o homem, por ser direcionado racionalmente à objetividade, não teria capacidade de fazer mais do que uma coisa por vez. Uma mulher teria “achado um bom homem” se esse fosse trabalhador arrojado e conseguisse arrecadar recursos econômicos satisfatórios ou mesmo expressivos. Mesmo que fosse rude, grosseiro, ausente e tivesse uma concubina, ela deveria ser grata e se contentar com esse “bom homem”.

O estereótipo da mulher detentora da emoção

No outro polo estaria a mulher, considerada detentora da “emoção” e orientada pelo coração, ou seja, pelo sentimento. Suas capacidades afetivas lhe confeririam o potencial das emoções, dos relacionamentos e das conversas. O “ser emoção” seria da natureza da mulher e, portanto, ela é quem estaria apta para as funções de cuidado, serviço e auxílio, em sociedade e família. Isso significaria que seria da mulher a tarefa de cuidar do marido, dos filhos, da casa e do lar. Como não teria habilidades inatas para o raciocínio (ou muito escassas), estaria inapta para assumir posições de liderança, administração e empreendedorismo, tanto na sociedade como na família. Já houve um tempo, e bem longo, em que a mulher nem mesmo podia ir para a escola de ensino regular, pois acreditava-se que a mulher não teria capacidade intelectual para acompanhar os estudos. Um homem teria “achado uma boa mulher” se essa fosse habilidosa nas questões domésticas e afetivas. Também se não o importunasse com curiosidades e cobranças que exigissem seu empenho em questões dialógicas, afetivas, relacionais e domésticas. Mesmo que fosse desinformada, e de certa forma alienada, ele seguiria satisfeito com a dedicação ao lar dessa “boa mulher”.

A razão considerada historicamente soberana em relação à emoção

Esses estereótipos construíram, histórica e culturalmente, um distanciamento hierárquico entre homens e mulheres. Especialmente porque, há muito tempo, já com os gregos bem antes de Cristo, a razão foi elencada como habilidade soberana em relação à emoção. Por esse entendimento, o potencial racional colocava uma pessoa em superioridade na relação com outra considerada “emocional”. Acreditava-se que uma pessoa equilibrada seria aquela orientada tão somente pela razão. As emoções eram vistas como fraquezas de pessoas frágeis, sensíveis, inadequadas e até certo ponto ignorantes. Pessoas orientadas pela emoção eram consideradas incapazes de se autogerenciarem, por isso, sempre precisariam ter uma pessoa dotada de razão para conduzir a sua vida. Dessa forma, em se compreendendo, por milênios, que o homem era detentor da razão e a mulher da emoção, o homem foi definido, social e culturalmente, como superior em relação à mulher.

A polarização entre razão e emoção na delimitação dos papéis

E assim, nessa polarização, ao longo da civilização humana, foram delimitados os papéis para homens e mulheres na sociedade e na família. Os homens detentores da razão seriam os fortes, os racionais, os líderes e os empreendedores. As mulheres, por sua vez, detentoras de emoção, seriam as frágeis, as emocionais e sem capacidades de governo e administração. A elas caberia o envolvimento em tarefas consideradas menores, especialmente aquelas que não resultariam em ganhos financeiros. Isso mantinha a mulher subalterna ao círculo reservado e restrito do ambiente doméstico, em que as tarefas eram consideradas sem demandas de capacidades racionais. Por esse viés, delimitou-se que o homem fosse o provedor e a mulher a cuidadora do lar. O homem traria os recursos e proventos financeiros, e a mulher se envolveria na organização da casa, no cuidado dos filhos e nas demandas do marido.

Homem e mulher detentores de razão e emoção

Novas leituras já quebraram o paradigma polarizado de “homem razão” e “mulher emoção”. Os estudos sobre o cérebro humano mostram o óbvio, de que ambos, homem e mulher, são dotados de razão e emoção, ou seja, têm capacidade para pensar e sentir. O equilíbrio psíquico se estabelece pela integração da razão e da emoção, tanto em homens como em mulheres. A tendência dos homens à razão e das mulheres à emoção tem mais a ver com as formas polarizadas na socialização de homens e mulheres, do que com a sua natureza propriamente dita.

Homens e mulheres, ambos têm em sua natureza as capacidades inatas da razão e da emoção.

Sempre que falamos para um menino que “homem não chora” estamos lhe contando uma mentira, pois a verdade é que homem chora sim, porque também sente. E da mesma forma estamos mentindo quando falamos para uma menina que “mulher não pode questionar”, sendo que a verdade é que mulher questiona sim, porque também pensa.

Os detentores de razão e emoção como provedores e cuidadores

Realinhando o potencial racional e emocional, para capacidades reconhecidas tanto em homens como em mulheres, os papéis e as tarefas sociais e familiares perpassam por mudanças radicais. O homem podendo demonstrar suas emoções nas relações se torna mais participativo no convívio doméstico. Reconhece o lar como sendo também o seu ambiente de cuidado e relacionamento. O lar passa a ser para ele um lugar de interação afetiva, empática e colaborativa. Não apenas um lugar onde ele habita, provê o sustento e usufrui do serviço oferecido por sua “boa mulher”. A mulher, por sua vez, aceita em seu potencial intelectual, passa a expressar ideias empreendedoras, inserindo-se também no mercado de trabalho. Expressa o seu potencial nas mais variadas funções, incluindo cargos administrativos, executivos, governamentais e de liderança. O mundo para além das paredes domésticas passa a ser também o seu lugar de intervenção, interação e troca de experiências, não um lugar proibido, como se não lhe pertencesse.

Perspectiva relevante para a vida social e familiar

Essa perspectiva tem especial relevância para a vida familiar, pois favorece que ambos, homem e mulher, se percebam como provedores e cuidadores do lar. Dessa forma, eliminam-se as cobranças e definições polarizadas em torno de “quem serve” e de “quem é servido”. Ambos, passam a servir-se mutuamente, no reconhecimento de que as tarefas que envolvem a vida familiar requerem a participação de todos.

Dessa forma ambos, homem e mulher, passam a ser provedores e cuidadores das questões sociais, familiares e domésticas, bem como dos assuntos do coração, da mente, da alma e do espírito.

Homens e mulheres participam do todo

A pergunta “Você ajuda a sua mulher em casa?”, começa a causar espanto. Alguns ainda respondem “sim, claro, ajudo, entendo que as vezes eu posso, e até devo ajudar em alguma coisa”, numa avaliação de que o homem entraria como “ajudante”, como se fosse uma atitude altruísta de um “bom moço”. No entanto, já vemos um bom coro de homens entoando nova resposta “Não, eu não ajudo. Eu faço a minha parte. A louça, a roupa e a casa suja não são somente da minha esposa. Da mesma forma os filhos não são só dela para serem cuidados. Como tudo isso é meu também, reconheço que devo fazer minha parte”. Na contraproposta as mulheres são convidadas a evoluir, entendendo que ao trabalharem fora do ambiente doméstico não estão apenas “ajudando com as contas quando der”, como se fosse uma expressão de generosidade. Ou como se estivesse conseguindo um “dinheirinho extra” para comprar suas coisas ou ajudando o cônjuge quando esse está em algum aperto financeiro. Uma mulher deve reconhecer que as contas também são dela, pois come, dorme, veste, usa energia elétrica, água e internet, passeia e estuda. Portanto, é justo que também assuma responsabilidade pelos gastos.

Cada vez mais vemos homens percebendo que as tarefas da casa também são deles e as mulheres percebendo que as contas da casa também são delas.

Acordos coerentes entre os detentores de razão e emoção

No caso de marido e mulher acordarem que um irá trabalhar fora e o outro se ocupará com as questões do lar, deverão entender que numa parceria, ambos estão contribuindo para compor o orçamento. A contribuição pode ser em dinheiro ou em forma de serviço. Mesmo assim, o casal ainda precisa avaliar outros critérios. Por exemplo, aquelas tarefas que envolvem a vida familiar que nunca dão folga e se estendem para o turno da noite, refeições, momentos de lazer, passeios, viagens, visitas, feriados, finais de semana e mesmo nas férias. Essas tarefas não podem simplesmente entrar no bojo das tarefas de quem não tem um trabalho (remunerado) fora de casa, pois certamente haverá sobrecarga. Por outro lado, aquele que trabalha fora não poderá assumir a sobrecarga de dividir igualitariamente todas as tarefas domésticas com quem decidiu trabalhar somente em casa nos cuidados do lar. Tanto em uma situação como na outra poderá se estabelecer um sentimento de “estar sendo injustiçado”. Isso poderá gerar disputas e cobranças que afetam negativamente a parceria conjugal e a vida familiar. E no caso dos dois trabalharem fora de casa, é mais do que coerente que dois trabalhem dentro. A matemática é bem simples, dois fora, dois dentro. Portanto, os acordos e participações de ambos devem ser coerentes, colocando em pauta a razão e a emoção, seguindo a lógica e exercendo a empatia.

Homem e mulher reconhecendo-se mutuamente detentores e capazes em razão e emoção caminham melhor em parceria. A convivência se torna mais enriquecedora, em que ambos se comprometem com o ambiente social e com o sistema familiar, numa proatividade amorosa, empática e colaborativa.

7 fev 2020, às 00h00. Atualizado em: 4 jun 2020 às 15h02.

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