Você sabia? Filpo celebrou único título há 55 anos e morreu na favela

Um dos maiores técnicos da história do Palmeiras, Nelson Ernesto Filpo Núñez celebrou seu único título pelo clube há exatos 55 anos. Ganhador da edição de 1965 do Torneio Rio-São Paulo e responsável por dirigir seu elenco com a camisa da Seleção Brasileira na mesma temporada, o argentino, magoado com o ex-time, morreu na favela de Heliópolis.

Defendido por ídolos como Valdir Joaquim de Moraes, Djalma Santos, Valdemar Carabina, Ademir da Guia e Dudu, o Palmeiras venceu o Botafogo por 3 a 0 no dia 23 de maio de 1965. Após a partida, diante de mais de 46 mil pessoas no Estádio do Pacaembu, os jogadores deram uma volta olímpica para festejar a conquista do cobiçado título interestadual.

Em setembro do mesmo ano, sob o comando de Filpo Núñez, até hoje o único estrangeiro a comandar a Seleção, os jogadores do Palmeiras representaram o Brasil na vitória por 3 a 0 sobre o Uruguai, amistoso que marcou a inauguração do Mineirão. Em três passagens pelo clube alviverde, o técnico argentino acumulou um total de 154 partidas.

No Brasil, Filpo ainda treinou uma infinidade de clubes, como Cruzeiro, Vasco e Corinthians. Ao longo da carreira, trabalhou em 10 países, entre eles Espanha e Portugal. Com o dinheiro recebido como técnico, comprou uma casa confortável e chegou a ter quatro carros na garagem – à Gazeta Esportiva, no ano de 1980, disse que poderia se aposentar “com as vacas na sombra”.

Filpo batizou seu sistema de “pim-pam-pum”, baseado em rápidas trocas de passe rumo ao gol. Considerado folclórico, acabou taxado de ultrapassado precocemente e, na jogatina, perdeu seu dinheiro. Em 1996, sobreviveu a um incêndio no hotel em que vivia, na Avenida Cásper Líbero. Desalojado, passou a dormir em uma fatia de espuma com menos de 5cm de espessura na casa de um conhecido, mas foi obrigado a sair.

Ao tomar conhecimento da situação de Filpo Núñez, o pastor Carlos Altheman, da Ação Social Jerusalém, se dispôs a abrigá-lo. Com um velho baú como único patrimônio, o antigo técnico da Academia chegou à favela de Heliópolis em 1998. Ele passou menos de dois anos no local, mas deixou saudades e foi homenageado ao nomear um centro esportivo na comunidade.

“Arrumamos um quarto para o Filpo, mobiliamos, compramos roupa. A verdade é que ele era bem paparicado”, disse Altheman, sorridente, em 2014. “Às vezes, ainda fico pensando: era uma celebridade e esteve aqui conosco. O grande técnico do Palmeiras veio viver na favela com a gente. Para nós, foi uma grande honra, um presente que caiu do céu. É motivo de grande orgulho tê-lo recebido”, afirmou o pastor evangélico.

Vaidoso, Filpo aproveitava as aprendizes de cabeleireiras da Ação Social Jerusalém para manter o cabelo pintado e as unhas feitas. Mimado, costumava comer as massas que adorava quase todos os dias, especialmente raviólis. Em contrapartida, o ex-técnico de Ademir da Guia treinava um grupo de 97 meninas em um antigo lixão transformado em campo de futebol, à época com pedras e cacos de vidro no chão.

“Durante anos, mantive amizades que não eram verdadeiras. Vivia em um mundo de fantasia, de pura hipocrisia. Ganhei muito dinheiro. Perdi tudo jogando, gastando. Cheguei a um ponto em que não tinha mais vontade de viver. Hoje, aterrissei com uma bíblia na mão. Sou grato a Deus por encontrar a paz que nunca tive em 42 anos de profissão”, disse Filpo à Gazeta Esportiva em novembro de 1998.

Com a autoestima fortalecida, Filpo Núñez, aos 78 anos, pediu Marlene Câmara Salviano em casamento, mas morreu poucos meses antes de oficializar a união. Satisfeito com a reviravolta em sua realidade, o argentino levou até o fim da vida o desgosto com o Palmeiras. De acordo com o pastor Carlos Altheman, ele sentia falta de reconhecimento por parte do clube que dirigiu nos anos 1960 e 1970.

“O Filpo falava: ‘Pastor, tiraram a palavra ‘gratidão’ do dicionário’. Era mais respeitado pela Portuguesa Santista. Uma vez, visitamos a sala de troféus do Palmeiras juntos e ele ficou sentido por não ter nem sequer uma foto no local. ‘Eu montei a Academia’, dizia. No final da vida, morando conosco em Heliópolis, acho que sentiu que a palavra gratidão tinha entrado novamente no dicionário”, contou Altheman.

Naturalizado desde 1969, Filpo se dizia um “argentino de coração brasileiro” e considerava o amistoso diante do Uruguai o maior momento da carreira. “No meu baú, guardo medalhas e troféus de 42 anos de carreira. Pergunto: por que não existe uma única foto minha na sala de troféus do Palmeiras, se só dei títulos, glórias e alegrias ao clube?”, questionou, ressentido, em uma de suas últimas entrevistas.

Poucos meses antes do casamento com Marlene Câmara Salviano, Nelson Ernesto Filpo Núñez sofreu um ataque cardíaco, em março de 1999. Ele chegou ao hospital com vida e fez um sinal de positivo para o pastor Carlos Altheman, mas não resistiu. Ex-jogadores como Luís Pereira, Zé Maria, Gilberto Sorriso e Ivair compareceram ao velório em Heliópolis, além de Affonso Della Monica, então diretor do Palmeiras.

Então com 78 anos, Filpo estava cheio de planos – além de casar, pretendia trazer times da Argentina para realizar um festival em Heliópolis. Após o falecimento repentino do treinador, as recordações guardadas no velho baú foram transportadas para uma sala do centro esportivo que levaria seu nome na comunidade em que redescobriu o significado da palavra gratidão.

23 maio 2020, às 00h00.
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