Entregava panfletos. Trabalho diário. As horas avançavam. Sentiu-se cansado. Sede muito forte. Ansiava por um copo d’água. Não sabia a quem pedir. Bairro enorme de terrenos e casas igualmente enormes. Ricos. Parou na calçada. Um vento soprou. A sacola com os panfletos pesava. Suava. Precisava entregar tudo para receber. Faria uma pequena compra no mercado ao fim do dia.

Vivia sozinho desde a morte da mãe. Herdara a pequena casa num bairro que era quase uma chácara. Estudara, mas não conseguia trabalho formal. O último fora numa loja de móveis. Demitido. Contenção de gastos.

Chamava-se João. Como tantos outros de mesmo nome, sentia na pele os desleixos de uma vida dura. Procurava não pensar muito. Vivia modicamente com pouco. Gostava da simplicidade. Adequação. Depois de um tempo, parou até de sonhar…

O calor ficou mais intenso. Precisava tomar água. Urgência. A fome até que podia esperar mais um pouco. Levara um sanduíche, mas deixara na bolsa da bicicleta lá no trabalho. Naquele dia, a entrega de panfletos não estava rendendo. Em certos dias, tudo parecia andar mais devagar, quase parando.

Um carro enorme passou. Uma caminhonete também passou. Bairro de ricos. Não via vantagem em entregar panfletos num lugar assim. Mas era de propaganda de uma loja de roupas caríssimas. A agência publicitária destacou que aquele era um trabalho personalizado. Além de personalizado, ele sabia que o material era muito caro devido às dobraduras, faca especial e coisas do gênero aplicadas naquele tipo de propaganda. De tudo isso, ele tinha ótimo conhecimento, pois estudara comunicação, com habilitação em publicidade e propaganda e foram muitas as vezes em que precisou fazer orçamentos do tipo para estágios. Notara que ao estudar aquele tipo de curso, assinara seu atestado de desemprego. Nunca conseguira um trabalho digno na área. Os poucos que apareciam, pagavam migalhas. Não dava sequer para comer…

A maldita sede corroía. Procurou produzir saliva, mas não conseguiu. Em sua vã idiotice, acreditava que engolindo saliva, mataria um pouco da sede. Impossível.

Chegou a pôr o dedo em uma campainha de uma das enormes casas, mas desistiu. Aquela era uma gente muito estranha e desconfiada. Limitou-se a inserir um panfleto daqueles materiais gigantes que mais pareciam uma revista n caixa de correio. Caminhou mais um pouco.

Ouviu um barulho de torneira jorrando. Regador. Parece que o cérebro entendeu tudo. Sem cerimônia, antes de inserir o material na caixa, apertou o botão do interfone. Esperou. O coração bateu mais forte. Ouviu. Não entendia o medo que sentia. Não entendia mais nada…

“Quem é?”, perguntou uma voz.

“Sou entregador de panfletos e estou com muita sede. Pode me arrumar um copo d’água?”, indagou.

Nada ouviu. O portão gigante se abriu logo depois. Um regador molhava a grama como imaginara. Avançou para lá. Queria meter a boca naquele jato d’água e se esbaldar. Nada mais importava.

“Moço! Venha beber água?”, ouviu alguém chamar.

Olhou para o lado. Como que por milagre, esqueceu-se da sede. Ela surgiu como um anjo. Vestia uma saia longa e tinha na mão um jarro com água. A blusa de crochê era branca transparente. A pele morena ficava um pouco à mostra. Fixou-se naqueles olhos castanhos. Ela usava óculos e sorria. Delicada.

Caminhou até ele. Permaneceu estático. Entregou-lhe o copo. Bebeu tudo sentindo dores no abdômen pelo excesso de água. Tomou mais um copo. Ela sorria.

Sentiu-se refeito, mas inebriado. Vontade de abraçar aquele corpo, de beijar aquela boca. Sem que ele saísse do sonho, ela o convidou a entrar.

“Venha almoçar comigo?! Estou sozinha. Na verdade, eu vivo sozinha”, comentou.
Pegou sua mão. Ele tornou a estremecer. Na outra, tinha a jarra. Ele levava o copo. Entraram na casa.

Um prato foi acrescentado. A mesa já estava posta. Fartura. Ele lavou as mãos. Quando voltava para a mesa, ela lhe abraçou.

“Eu te esperei por tanto tempo. Graças a Deus que veio. Eu te amo!”, falou sem jamais perder o sorriso encantador.

Agora, ele nada entendia. Deixou-se levar pela emoção. Um beijo transcendental fê-lo flutuar. Era um começo para os dois. Nada sabiam de destino nem de vida. Apenas se deixaram sentir.

Lá fora, um quero-quero cantou na grama do enorme terreno. Como programado, o regador parou de jorrar água. Ouviram o barulho do dispositivo girando devagar até silenciar num último estalo. As grandes janelas estavam abertas. No chão, a sacola com panfletos jazia inerte. Naquela casa o cheiro de amor se mesclou ao da comida. Refeitos, eles almoçaram juntos pela primeira de milhares de vezes dali em diante e prosseguiram.
Porque na vida, há dessas coisas. O inusitado, às vezes, age ladinamente, alheio a qualquer vontade ou atitude. Não há explicações para os encontros. Em coisas de almas, não se pode interferir com a praticidade imposta pelo concreto, pelo pragmatismo que insiste e moldar a todos.

6 set 2019, às 00h00. Atualizado em: 9 jun 2020 às 15h35.
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