Joana D’Arc é um dos mais fascinantes personagens da História. Nascida há seis séculos, até hoje ela é retratada em livros e filmes biográficos, além de ser considerada uma das grandes heroínas francesas. Seu magnetismo, carregado de foco, força, fé e sobretudo uma convicção inabalável em suas crenças, agora aparece retratado em uma história em quadrinhos nacional. O Martírio de Joana Dark Side (Editora Texugo, 76 páginas) foi lançado no final do ano passado, em edição limitada. Os exemplares não só se esgotaram rapidamente como ainda deram ao seu autor, Wagner Willian, um dos mais importantes prêmios do universo brasileiro das HQs, o HQ Mix, na categoria arte final.

Premiações e indicações já não são novidade na carreira deste quadrinista potiguar mas h;a muito tempo radicado em São Paulo. Sua obra anterior, Bulldogma (Editora Veneta, 120 páginas), também foi agraciada com o HQ Mix, desta vez no quesito de novo talento em roteiro. O título também faturou o Grampo na categoria ouro, superando outras publicações brasileiras e estrangeiras lançadas na temporada de 2016. Ainda recebeu uma indicação ao Jabuti, considerado o principal prêmio da literatura nacional, que desde o ano retrasado também está voltado às edições dedicadas à arte sequencial.

Willian está neste sábado em Curitiba. Ele participa do Iticlub, o clube de leitura da Itiban, o maior e mais longevo templo dedicado aos quadrinhos e áreas afins da capital paranaense (mais detalhes sobre este evento você tem aqui). Será feita a análise de Bulldogma com a participação do autor, que ainda aproveita para lançar e autografar a segunda edição limitada de O Martírio de Joana Dark Side. O Ric Mais conversou com Wagner sobre sua mais recente obra e a relação que ele possui com os filmes sobre Joana D’Arc e a história da camponesa francesa. De quebra, o papo ainda se estendeu ao alcance de Bulldogma três anos depois e a revelação a respeito de sua próxima criação, que estará pintando para os fãs e colecionadores até o final deste ano.

Por que você optou por dar este título (mais especificamente a respeito da escolha pela palavra “martírio”, o trocadilho entre “d’arc” e “dark” e o acréscimo do substantivo “side” ao nome da francesa)?

Martírio foi o que Joana passou na mão daqueles homens que a condenaram. Diferente da Joana d’Arc, a Joana Dark Side teve outro final. Mais sombrio? Mais justo? Só lendo a HQ para descobrir.

Você teve grande inspiração no filme do dinamarquês Carl Dreyer (1928) para fazer a arte da história. Por quê? Qual o seu grau de envolvimento emocional com A Paixão de Joana D’Arc e quando você viu este filme pela primeira vez?

Essa HQ é a primeira de uma série de quadrinhos baseados em filmes que caíram em domínio público. Para não fazer apenas uma adaptação, resolvi subvertê-los. Não me lembro de quando vi ao filme do Dreyer, mas sabia que era um filme impressionante. E se debruçava sobre os momentos finais de Joana, sobre seu julgamento e condenação. Ali estava o que eu precisava subverter.

O fato deste ser um filme mudo ajudou na concepção visual do texto disposto pelas páginas, sem balões e com variação de fontes e tamanhos? Este texto vindo de vários lados e com várias “intensidades” também podem servir de contraponto às vozes que Joana dizia escutar nos últimos anos de sua vida?

Se o áudio dos diálogos inexiste no filme e seu texto é apresentado naquelas placas de fundo preto, a adaptação para quadrinhos deveria seguir outra regra ou se diferenciar do usual para criar uma concordância com o filme. Acabou fazendo referência a essa questão das vozes ocultas que ela ouvia também.

O que a versão de Victor Fleming (Joana D’Arc, de 1948, com a atriz sueca Ingrid Bergman) contribui em relação a personagens e cenários neste livro?

Ajudou na composição do cenário e em uma ou outra expressão.

O Processo de Joana D’Arc (1962), de Robert Bresson, e A Mensageira: A História de Joana D’Arc (1999), de Luc Besson são outras versões da personagem para o cinema. Você assistiu também a estas duas?

Sim! Adoro a versão do Luc. Milla Jovovich está incrível como Joana! O filme do Bresson, assim como o de Dreyer, fazem esse recorte histórico, ficando apenas no julgamento de Joana. Ambos se valeram do registro do julgamento real de Joana. O filme do Bresson, nesse sentido, é mais completo.

No posfácio você comenta ter ficado muito impressionado com a história dessa camponesa analfabeta que liderou um exército em nome da fé e religiosidade. Por quê? Você sempre pensou em transformar a história de Joana para uma obra em quadrinhos?

Muito menos pela fé e religiosidade e muito mais pela sua própria convicção e forças, mesmo sendo difícil separá-las em se tratando de Joana. Mas para mim, ficou isso, alguém acreditou em si mesmo e em seu trabalho até as últimas consequências. Como escrevi lá, não me lembro mesmo quantos anos eu tinha ao conhecer sua história.

Ao longo da sua história você vai pesando a mão no preto, conforme ocorre o seu julgamento, condenação e execução. Isto foi algo intencional desde antes do início da arte ou algo que foi sendo pensado conforme o andamento da concepção gráfica?

Foi intencional. A ideia foi sugerir que as páginas estavam carbonizando ao aproximarem da cena do fogo.

Por que você considera Renée Falconetti uma das melhores atrizes de todos os tempos, mesmo ela tendo feito única e exclusivamente este filme?

Essa consideração não é minha, mas de uma das maiores associações internacionais sobre atuação. Falconetti figura entre as 25 maiores atrizes de todos os tempos. Não me lembro mais do nome da associação. No entanto, o Google proverá isso… (risos)

Você também diz no posfácio que coloca o diretor Dreyer em diversas páginas…

Exato. Ele está lá porque, ao que consta, Falconetti foi uma espécie de Joana para o filme. Sofreu o diabo na mão do diretor. Achei pertinente jogá-lo ao lado dos algozes.

Que material de pesquisa – além da entrevista dada pela atriz a Vinícius de Morais em 1942 – você também utilizou como base e inspiração para esta obra em HQ?

O julgamento de Joana é um dos mais famosos no âmbito do direito. Fui atrás de seu texto original na internet.

No mesmo posfácio você fala que não apenas adaptou mas também subverteu a história do julgamento de Joana D’Arc. Quais foram estas subversões?

Não darei spoiler. Mas posso dizer que utilizei recurso de metalinguagem fazendo o paralelo entre Joana e Renée e subverti o final.

Seis séculos depois o que permanece atual na história da vida de Joana D’Arc? Como você a compara com outros grandes nomes femininos da historia mundial que são citados ao final do texto do posfácio?

Foram todas mulheres que tiveram a coragem de enfrentar valores rançosos de sociedade doente.

Quem seriam, no seu entender, as Joanas D’Arc do Século 21?

Marielle Franco. E mesmo com o que andam especulando em volta dela, Greta Thunberg. E Catarina Lorenzo.

Quanto foi a tiragem da primeira edição de O Martírio de Joana Dark Side e qual o motivo da escolha por uma edição “limitada”?

Fiz 200 exemplares. Foi questão de logística. Não tenho espaço para mil livros em casa. Além de tornar algo “especial” essas tiragem limitadas…

Você mudou prefácio e capa para esta nova edição. Por quê?

Se não mudasse, seria uma reimpressão e não uma nova edição.

O livro saiu pela sua própria editora, a Texugo. Você chegou a oferecer a obra a alguma editora nacional e internacional antes ou decidiu desde sempre apostar você mesmo nesta obra? Depois do prêmio HQ Mix de melhor arte final do ano passado você já recebeu alguma proposta de editá-la por uma casa nova e maior?

Fiz a Joana para lançar durante a CCXP do ano passado. Não havia a intenção de publicá-la por outra editora se não a minha. Certamente a enviei para minha agente literária, pensando no mercado lá fora, que também ficou muito feliz com a vinda do prêmio. Ainda não recebi propostas nesse sentido. Mas estamos abertos à negociação.

Qual a importância do HQ Mix dado a esta obra independente? Aliás, Bulldogma também foi agraciado com prêmios e indicações importantes nos campos dos quadrinhos e da literatura. Além de serem um claro reconhecimento da qualidade de seu trabalho, no que estes prêmios serviram para impulsionar comercial e editorialmente as obras?

Uma importância imensa! Para você ter uma ideia, uma editora gringa, ao receber a sugestão de um quadrinho brasileiro para publicação, pergunta quais os prêmios obtidos. Se não ganhou nenhum, é bem provável que a editora acabe descartando a HQ. Negócios são negócios.

Ainda hoje, três anos depois de seu lançamento, Bulldogma repercute e está sendo discutido. Você esperava tamanho alcance e longevidade quando estava criando a obra?

Nunca sei o que esperar de meus livros. Só sei que fico feliz demais com tudo isso.

A protagonista de Bulldogma, a ilustradora Deisy Mantovani, tem muito em comum com Joana D’Arc, não só visualmente como também em questões de temperamento e personalidade?

Se eu poderia citar o nome de Deisy no posfácio do Martírio? Digamos que sim.

Bulldogma é uma história que traz tons de conspiração e ficção científica. Mas é uma obra de ficção. O que você acha da nossa realidade, nos últimos anos, especialmente no Brasil, também ganhar nuances surreais de conspiração e ficção distópica?

Acho tenebroso, cara! Não diria nem que são nuances. A coisa é bem concreta mesmo e avassaladora. Bom senso está virando artigo raro por aqui. O pior é perceber que a má intenção foi generalizada.

Você trabalha atualmente em alguma nova obra em quadrinhos ou literatura? Pode falar um pouco sobre isso?

Claro. Em novembro sairá Silvestre. Minha primeira HQ colorida, feita com óleo, nanquim e sangue. Uma história sobre o que a terra pode lhe dar e o que o homem é capaz de oferecer.

28 set 2019, às 00h00.
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