Em '50 tons', quem mais apanha é a inteligência do espectador

Levei um susto ao entrar na sessão de “50 tons mais escuros”. Não porque Anastasia Steele estivesse sendo maltratada com algum objeto pontiagudo, mas porque entrei em uma sessão dublada. Corrigi o erro em alguns segundos, mas pude constatar que mais gente prefere a versão dublada do que a legendada, mesmo em um shopping de alto padrão de Curitiba.

Isso confirma uma tendência nacional já detectada pelo Datafolha há uma década: 37% de preferência por legendas contra 56% por dublagens nos cinemas, segundo uma pesquisa do instituto.

Minha sessão era legendada, mas também comentada. Duas meninas decidiram compartilhar quase todas suas impressões com as pessoas em volta. “Uau, que gato”, uma delas disse, literalmente assim, com esse “uau” de tempos remotos, quando Christian Grey apareceu pela primeira vez. Mais tarde, durante uma cunilíngua, sua amiga se ouriçou na poltrona: “Parada é forte, mano”.

Eu não disse nada quando Anastasia surgiu na tela, mas também fiquei bobo. Que mulher. Que olhos. Que jeitinho. Quem teria coragem de estapear, na vida real, um rosto daqueles?

Mas que tal essa continuação de “50 tons”, afinal?

Resposta difícil. Grosso modo, dá pra dizer sem receio que o filme é bastante ruim. Não faltam chavões: a infância sofrida, a onipotência do bilionário, a dulcificação progressiva do casal e assim por diante. “50 tons mais escuros”, no entanto, não é um filme ruim qualquer. Tem lá suas especificidades.

É um filme ao mesmo tempo adulto e mirim, por exemplo. Até que ponto alguém consegue ceder sua liberdade e ser conscientemente submisso em um relacionamento? Até que ponto uma fixação pelo sadismo pode ceder com o tempo? Até que ponto uma personalidade tão problemática é atraente? Essas são as questões adultas, que nem toda comédia romântica corriqueira tem.

As mirins estão em quase todo o resto. “Eu não sabia que você tinha uma casa em Aspen”, diz Anastasia para Grey. “Eu tenho muitas casas”, ele responde. Ela rasga um cheque de US$ 24 mil que ele quer lhe dar. “Eu ganho isso a cada 15 minutos”, ele responde (o que, uau, significa US$ 69 milhões por mês, ou mais que o salário do Messi). Os diálogos são adolescentes assim, feitos ao máximo para deslumbrar os tolos.

O maior fetiche explorado no filme, aliás, não é o sadismo, mas o dinheiro. Trata-se mais de ir lá se babar pelos clichês do poder monetário irrestrito que qualquer outra coisa.

Anastasia gosta de literatura e quer subir na carreira, Grey tenta mudar mas não consegue se livrar do passado perturbado, os dois querem ficar juntos mas precisam sintonizar suas expectativas. Tudo isso vai se desenrolando mas o que mais importa é a finesse delineando cada cena do casal. Não há problema na vida grande o suficiente quando se discute em uma cobertura com paredes de vidro e uma lareira crepita ao fundo.

Nem apanhar pode sair de graça, ensina o filme. Grey exercita seus fetiches em um complexo aveludado de alguns milhões. E foi assim que o sadismo conseguiu se tornar um livro best-seller, um blockbuster e um tema planetário: com lingeries incríveis, com judiação e dores estilizadas, com um bonitão e uma mulher lindamente frágil, com uma obessão pela elegância permeando cada impulso animalizado. Enfim, um sadismo gourmet – muito menos gente, é claro, suporta o constrangimento público de se assistir “Ninfomaníaca”, um longa-metragem muito mais escuro, nos cinemas.

No fim, a inteligência do espectador apanha mais do que Anastasia.

14 fev 2017, às 00h00. Atualizado em: 20 jul 2023 às 10h04.
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