Biografias quase sempre são algo bem complicado de se ver na tela do cinema. Reduzir a cerca de duas horas uma vida inteira – quase sempre tendo como foco principal a trajetória de gente com vida pública intensa e de grande valor para a História – é uma tarefa difícil de ser feita. A parceria entre direção e roteiro precisa estar bem afiada para que não se provoque um desastre para o espectador. Reconstituição de época nem é o grande problema, mas sim a construção de uma trama que seja coesa, não apresente buracos históricos gritantes ou ainda transmita uma imagem errada ou distorcida do que aquela figura de fato um dia foi. E normalmente a pessoa biografa é tão multifacetada que unir os pontos necessários transforma-se em algo hercúleo.

Judy, cinebiografia de Judy Garland que estreia nesta quinta-feira em todo o Brasil, é um belo exemplo de como transpor a história de uma celebridade para a grande tela. Em primeiro lugar porque a intenção aqui não é contar o porquê da transformação da atriz e cantora em um dos grandes ícones da cultura pop mundial do século 20. O foco aqui é o conturbado último ano de vida da estrela e como os problemas que perturbavam constantemente seu dia a dia nos palcos e fora deles têm relação com um momento chave de sua adolescência: a experiência de, aos quinze anos de idade, assinar um contrato com os estúdios MGM e rodar logo depois o filme O Mágico de Oz (lançado em 1939) interpretando a protagonista Dorothy Gale.

Depois do sucesso do longa-metragem, Garland – nascida Frances Ethel Gumm em 10 de junho de 1922 – se transformou em um grande ícone LGBT. Tudo pela mensagem passada no filme, a de que todo mundo tem suas particularidades e as diferenças, por mais estranhas que possam parecer, não devem ser um impeditivo para conhecer e gostar da pessoa. Vale lembrar que até o final dos anos 1960 ser gay era trafegar na clandestinidade social. No Reino Unido, a homossexualidade era até considerada crime por lei. Nos EUA não chegava a tanto, mas havia muita repressão policial, o que só começou a mudar depois da batalha de Stonewall, na cidade de San Francisco. Portanto, a imagem de Judy tornou-se um eterno símbolo de idolatria dos homossexuais e ocupou a condição de eterna diva dos palcos e das telas de cinema.

Ao mesmo tempo em que transmitia aos gays a sensação de esperança da chegada de dias de liberdade sexual e comportamental, entretanto, Judy sempre sentou-se uma grande prisioneira da sociedade. Inicialmente da eterna pressão do star system hollywoodiano do tempo áureo dos grandes estúdios.  Não podia namorar, não podia comer o que queria para que isso não interferisse no peso, tinha sempre de tomar remédios para dormir direito, não podia desobedecer a programação intensa de divulgação de seus filmes. Isto é, tornou-se escrava da engrenagem do estrelato em troca do sonho pueril e infanto-juvenil de viver profissionalmente de sua paixão pela arte. Já bastante famosa, sofreu também com a série de insucessos matrimoniais. Casou-se quatro vezes, mas foi especialmente com seu terceiro marido, Sidney Luft, que conheceu o inferno emocional com os frequentes abusos por parte do marido que também era seu empresário pessoal. Aos poucos Judy foi entrando numa espiral decadente, fazendo com que os abusos etílicos e o explosivo temperamento interferissem diretamente no seu rendimento profissional a ponto de não conseguir mais trabalhos significativos e duradouros como atriz ou cantora.

É justamente no fundo do poço que reside o recorte deste filme produzido pela BBC. O espectador acompanha a última ida da estrela a Londres, contratada para uma residência de várias noites em um nightclub, acompanhada por uma big band local, cantando o repertório de standards colecionados durante quase três décadas de carreira. Seis meses depois desta experiência, Garland morreria aos 47 anos, após uma overdose nada acidental de remédios no banheiro de sua casa que comprara em Londres porque não aguentava mais os Estados Unidos, em especial o star system do cinema e televisão de Los Angeles. O roteiro, adaptado de uma montagem teatral, não passa o pano nos excessos da estrela, é bem verdade, mas arrisca-se bastante para mostrar um lado positivo dela nestes tempos difíceis.

A magistral interpretação de Renée Zellweger – que mesmo assim, em um instante ou outro, não resiste a tentar fazer seus característicos biquinhos – também contribui para a construção de uma protagonista bastante forte em cena, que impacta tanto ao dar pitis, quanto cantando ou tendo suas crises emocionais escondida em algum canto longe de todo mundo. A adição de alguns flashbacks da adolescência (isto é, antes de rodar O Mágico de Oz e depois de colher os frutos do sucesso do filme) torna-se item essencial para entender o comportamento errático que volta e meia faz azedar o clima nos bastidores e contribuir para afundar ainda mais a carreira. Mesmo com tudo isso, a Judy retratada neste filme ainda traz a mesma esperança de liberdade e tempo bom que a Judy adolescente trazia em O Mágico de Oz. Aborda com discrição e suavidade as dificuldades enfrentadas pelos gays britânicos, mostra toda a efusividade e alegria dela nos palcos (mesmo quando está bêbada e discute desbocadamente com alguém mais atrevido da plateia) e promove boas reflexões a respeito do sexismo e da ditadura da idade na indústria do entretenimento.

A filha Liza Minelli, então com vinte e poucos anos, aparece em um breve momento, durante uma festa descolada em Los Angeles. O chefe e patrão Louis B Mayer – um dos sócios da Metro-Goldwyn-Mayer – também não ganha tanto destaque assim, mesmo mantendo-a no cabresto durante o tempo em que a jovem era contratada do estúdio. Os destaques da história são os anônimos que gravitam em torno do cotidiano da estrela em Londres. A produtora que trabalha para o empresário que o contratou e faz as vezes de sua assistente pessoal. O pianista que comanda a extensa banda que a acompanha no club Talk Of The Town. O casal de fãs que a idolatram e assistem a todas as suas apresentações na capital inglesa. Tudo isso torna a cinebiografia mais intensa e traz mais proximidade ao espectador, justamente por retratar uma Judy Garland “gente como a gente” e com as mesmas angústias, dificuldades e ansiedades que as pessoas enfrentam mesmo com a diferença de meio século entre o tempo da narrativa e os dias de hoje.

E quem quer também ouvir música recebe o gostinho de ouvir trechos de várias canções gravadas em disco ou cantadas por Judy em filmes e programas de rádio e TV. Claro que tem “Somewhere Over The Rainbow” e claro também que a canção-símbolo de O Mágico de Oz foi estrategicamente colocada no final do filme. Mas também tem “San Francisco”, “For Once In My Life”, “Come Rain Or Come Shine”, e “The Trolley Song”, por exemplo. E tudo na voz da própria Renée Zellweger, o que engrandece ainda mais a sua atuação (que vem arrebatando importantes premiações como o SAG Awards e o Globo de Ouro e a transforma na favoritíssima para o londrino Bafta e o norte-americano Oscar deste início de fevereiro).

Por tudo isso, Judy torna-se uma experiência agradabilíssima de se conectar com uma parte da biografia de uma grande estrela do entretenimento pop. Talvez se o filme não fosse britânico e não focasse especialmente na parte britânica do final da vida de Garland a obra pudesse ter tomado rumo. Mas sorte a nossa que, desta vez, quem deu as cartas na produção não foi qualquer grande estúdio do atual star system dos Estados Unidos.

Judy: Muito Além do Arco-Íris (Judy, Reino Unido, 2019). Direção: Rupert Goold. Roteiro: Tom Edge e Peter Quilter. Com Renée Zellweger, Jessie Buckley, Finn Wittrock, Rufus Sewell, Michael Gambon, Richard Cordery, Royce Pierreson e Darcy Shaw. Paris Filmes. 118 minutos. Estreia nos cinemas brasileiros: 30 de janeiro.

28 jan 2020, às 00h00.
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